Relato de parto
O nascimento do João Salvador e de uma mãe recém nascida
FASE LATENTE
Eram 6h da manhã e fui ao banheiro fazer xixi, nada de estranhar para uma grávida. Mas desta vez veio uma corzinha vermelha, um pouco de sangue e um líquido esponjoso. Era o tampão mucoso. Tirei foto e enviei para a equipe perguntando o que teria de fazer. A resposta foi: esse líquido tem cheiro? Eu disse que sim, que senti um cheiro leve de água sanitária. Passado algumas horas tinha a EO em minha casa! A minha bolsa estourou mas não da forma como vemos nos filmes, fazendo uma poça e fazendo todo o mundo dizer que chegou a hora! Não, não foi à filme. Estourou alta e pouquinho. A Ludmila avisou-me que eu só poderia estar 18h em casa com bolsa rota e que se nessas 18h não entrasse em trabalho de parto ativo então teria de ir para a maternidade. Eu fiquei aparentemente tranquila. O dia passou-se em casa, acabei a botinha de croché que eu e o Matheus começámos junto (ele já tinha terminado a dele, mas eu não). O Matheus fez o almoço, descansámos e fomos ver a dilatação. Meu primeiro toque — estava de 4 cm! Fiquei bem surpresa, pois eu não estava sentindo nada demais. As contrações pareciam as de treinamento. Mas já eram contrações, sem ritmo ainda. A Priscila veio substituir a Ludmila. Jantámos sopa do pântano como diz o Matheus e fomos descansar. Mas quem conseguia dormir? O Matheus aproveitou e mostrou-me uma surpresa que ele preparou com sua cúmplice Cândida — um audio de várias mulheres amigas a dar-me força para o parto! Chorei muito de emoção,principalmente ao escutar as palavras emocionadas da minha mãe no final e a Júlia Tizumba abrindo cantando que eu era plantadeira de semente boa. Lá no fundo ainda tinha dúvidas disso! Mas hoje não mais, graças ao João Salvador.
Bateu o deadline, meia noite! Senti-me a Cinderela. Era hora de ir para a maternidade. E lá fomos, a Priscila nos acompanhou. Eu ainda na tranquilidade, como se nada se passasse. Cheguei à maternidade e dei entrada. Eu que assinei a papelada. E logo depois cotonete no nariz para teste do Covid! Já lá estava a minha médica obstetra, a Fernanda, à minha espera. Toda animada como de costume. A Sat Sundri, minha doula, chegou logo depois. E a Milene, a fotógrafa também já lá estava (eu estranhei porque era muito cedo para ela nos vir fotografar, mas depois soube que ela já lá estava a fotografar outro parto).
Deram-me a chave do quarto 409. A maternidade estava cheia e não podíamos ir logo para uma sala PPP. Eu ainda não tinha entrado em trabalho de parto, então tudo certo. Já sabia que iam ter de me induzir o parto, com misoprostol. Esta informação me abalou e cheguei na maternidade muito encucada. Conversei com a Fernanda sobre o assunto. A Sat Sundri já me tinha explicado ao telefone que isso poderia acontecer. Sugeriu-me tomar o shake para tentar entrar em trabalho de parto, mas eu não aceitei, pois não era certo que isso acontecesse. E eu não queria nem acelerar o processo nem ter efeitos colaterais de tomar o shake. Mas ao chegar à maternidade, caí na real. Vão-me induzir o parto! E não foi nada como eu tinha imaginado… e foi só o começo!
A noite se passou e de 4 em 4h a Fernanda me deu misoprostol. Deu para descansar um pouco. O Matheus ao meu lado, carinhoso. A Sat Sundri sugeriu fazer um rebozo para agitarmos um pouco. Tudo permanecia calmo e ainda houve tempo para contar a história da nossa família (as duas versões, a minha e a do Matheus).
De manhã, a Fernanda trocou com a Gabriela. A Ludmila estava de plantão na maternidade e vinha nos visitar com frequência. Em algum momento, que não lembro exatamente qual, a Sat Sundri fez-me uma trança no cabelo com imenso carinho e amor. Me senti cuidada e amada. Na verdade a equipe estava tão presente e entregue ao meu processo, tão atenta que me senti uma verdadeira rainha, tal como a Márcia me tinha falado nas últimas sessões de fisioterapia.
FASE ATIVA
Foi de manhã que as contrações começaram a ficar ritmadas e eu a ficar mais concentrada. Fomos para a PPP. A equipe e o Matheus colocaram a PPP do jeito que eu tinha imaginado — com as nossas fotos, luzes, meu altar com a Zumela, a Nossa Senhora de Fátima e ainda tive um bónus, uma imagem de uma Nossa Senhora grávida que estava lá na maternidade! Estava cheia de fome e não tardou que chegou o almoço (lembro da Gabi ter ido perguntar pelo meu almoço, eu já estava esfomeada desde de manhã).. Eu e o Matheus comemos um belo prato de frango! Eu que sou vegetariana. Soube muito bem, pois o meu corpo já sabia o que me esperava…eu é que ainda não!
As contrações foram-se intensificando e fui para o chuveiro. O Matheus sempre ao meu lado, massageando-me, dando-me apoio e com o bom humor dele. Com ele ao lado, tudo é uma festa! A equipe preparava a banheira, o tão esperado momento! O que eu fantasiei sobre a banheira! Eu achava que entrava na banheira e me sentiria num spa. Que as dores passariam. Só que não. Eu entrei na banheira com o Matheus. O Matheus é grande e eu não sou pequena, muito menos com o barrigão com que eu estava. Então me senti com pouco espaço. As dores continuavam a se intensificar. E eu mais para dentro. Comecei a sentir frio. Decidi sair. Não lembro ao certo se voltei ao chuveiro. Há uma parte que deixei de me lembrar.
A Carol veio substituir a Gabi. E trouxe o handpan! Eu nem queria acreditar. Afinal era um desejo meu que não tinha colocado no Plano de Parto, mas que ficou no meu wishing list ao ver o parto da Gabi. O handpan me ajudou a ir mais para dentro. Naquele momento ainda estava muito plena, respirando lindamente e suportando as dores das contrações. Afinal foi para isso que fiz a fisioterapia pélvica com a Márcia Roxo e o Yoga para gestantes com a Sat Sundri. Para saber respirar e lidar com as contrações. E estava indo lindamente.
Houve um momento que voltei ao chuveiro. E lá o Matheus voltou a colocar o audio das amigas dando força ao meu trabalho de parto. No final, ao escutar a minha mãe não contive as minhas lágrimas. Ainda hoje ao me lembrar de a escutar, me emociono. Ela me disse: “vai filha, força tu consegues!” Tudo o que eu sempre quis ouvir da minha mãe. Que eu consigo! Naquele momento acreditei um pouco mais que era capaz.
Voltei à banheira. Desta vez o Matheus ficou cá fora. Me apoiou de fora da água. Eu mudava de posições, em busca da posição sem dor. Mas ela não existia… para mim já tinham passado muitas horas desde que tudo tinha começado…e eu começava a ficar sem resiliência à dor. Até que percebi que o meu limite estava perto. Lembrei-me de ouvir, num encontro online das Amagolinas, a Gabi falar sobre o seu trabalho de parto e como foi importante para ela a anestesia. Fui desmistificando ao longo da gravidez que o importante era ter uma experiência que respeitasse os meus limites, o meu SER e que o idealismo poderia levar-me a uma experiência traumática. Um parto é uma experiência tão intensa, que desrespeitar meus limites poderia trazer consequências muito mais prejudiciais para mim e para o João Salvador do que admitir que precisava de anestesia.
E foi isso que aconteceu. Eu estava na banheira, a fantasia do spa estava a desfazer-se como um chocolate derretendo ao sol e naquele momento eu pedi anestesia. Foi um ato de coragem! Não era o que tinha planeado, nem o meu sonho, nem o meu ideal de parto humanizado. Mas era o meu limite enquanto ser humano. E não fazia de mim pior mãe, menos capaz ou a mulher não preparada! Não. Simplesmente cheguei ao meu limite de dor e aceitei isso naquele momento. Um momento de fraqueza e vulnerabilidade.
Lembro ainda da Márcia, a fisioterapeuta me dizer nas últimas sessões que não importava como o João iria nascer. Que eu já tinha feito tudo o que podia para me preparar. E que agora era tempo de celebrar! Ora para celebrar eu precisava estar plena e não traumatizada! Então decidir pela anestesia foi com a plena consciência que seria o melhor para mim e para o JS naquele momento.
Fui então anestesiada e não foi algo que me senti confortável. O meu corpo começou a estremecer muito. Fiquei muitos minutos estremecendo incontrolavelmente. Acredito que foi o meu sistema nervoso a completar o seu trabalho.No momento da anestesia o corpo relaxou e liberou todo o medo inconsciente que tinha sido reprimido. Sim, porque falar de trabalho de parto e parto e dizer que não tive medo seria uma grande MENTIRA. Tive todas as emoções — medo, tristeza, raiva e alegria. E foi mais ou menos nesta ordem mesmo.
Depois que o meu corpo estabilizou novamente, já não estremecia e também não sentia as contrações. Mas sentia uma comichão imensa na barriga. Tentei algumas posições, a Carol viu que o JS não estava totalmente encaixado. Fiz de tudo para as contrações não desacelerarem, mas com o efeito da anestesia era natural o trabalho de parto dar uma desacelerada mesmo.
Deu tempo para ouvir a Matilde Campilho proclamar um poema — mais um presente amoroso da Carol. Neste momento a Ludmila já tinha voltado. A Carol veio conversar comigo, com todo o seu amor, dizendo que sabia o quanto eu não queria ocitocina sintética, mas que para voltarmos ao ritmo do trabalho de parto seria necessário injetarmos ocitocina. E que as contrações poderiam vir mais dolorosas, mas que se assim fosse, eu poderia pedir anestesia de novo. Eu estava com tanto medo da dor das contrações que disse que queria anestesia antes da ocitocina. E assim foi. Depois da anestesia, a Carol fez um toque e rompeu a minha bolsa. Aí sim saiu muito líquido amniótico. Parecia uma fonte a sair de mim…
Sei que depois dormi. Precisava descansar. Estava muito cansada e a equipe também. Nesse momento a Sat Sundri já tinha ido embora e veio a Miriam substituí-la. E foi muito bom, ela chegou com uma frescura e amorosidade. Trouxe uvas, lembro dela a oferecer comida a todos nós. Eu não conseguia mais comer. O jantar já tinha vindo, mas eu já estava com azia e sem conseguir comer nada muito pesado. Dormi umas 2h.
Acordei com uma vontade imensa de fazer cocó. Lembro de ver o Matheus deitado no sofá e de o chamar para ele me ajudar a ir ao banheiro. Eu chorava, pois a vontade de fazer cocó não passava. E sentia uma pressão muito grande na vagina. Já era o JS a vir e eu nem sabia. Disse ao Matheus em tom de desespero que não ía dar conta. Naquela hora queria parar tudo e ir para casa dormir. Mas tinha um filho para parir. Então alguma coisa precisava de ser feita. E eu estava pronta para pedir uma cesariana! Não acreditava ter mais forças. E foi aí que a Fernanda, que agora tinha voltado substituindo a Carol, me levou para o banquinho, chamou a equipe e disse ao Matheus para ir para trás de mim para me apoiar. Era eu a entrar no expulsivo! Era eu quase a parir o João Salvador!
EXPULSIVO
Me disseram que o meu expulsivo durou uns 20 minutos, mas para mim foi uma eternidade. Na minha doce ilusão, dos meus treinos com o epinoo na fisioterapia pélvica, eu faria dois puxos e já sentiria o JS coroando. Mas não foi assim. A Fernanda estava à minha frente, sentada bem de baixo a ver o que estava acontecendo e nunca mais me dizia “olha a cabeça do bebé”. E eu desesperada a sentir a dor cá de baixo mas sem sentir a contração, fazia força para ele sair. Mas ele ainda nem estava coroando. Ela lá me disse para colocar a mão e sentir a cabecinha dele. Eu achava que ía sentir a cabeça toda. Mas senti um pedacinho mínimo da sua cabecinha. Mas foi isso que me deu forças para continuar a fazer força e a usar toda a minha raiva para gritar “Vem filho, vem filho!!!” A dor só se intensificava. E os últimos dois puxos foram muito intensos. Senti o famoso círculo de fogo, o nome diz tudo! Uma dor imensa que arde quando a cabeça está quase quase para sair. No desespero da dor eu pedia lavanda, chocolate, água! Eu dizia que me doía. A Fernanda repetia: eu sei que dói mas está quase, o João está nascendo. A Ludmila e a Fernanda estavam à minha frente, com um lençol à volta delas para eu puxar e fazer força. Eu gritava muito!!! E na minha dor, fui buscar recursos internos para lidar com ela. Instintivamente eu sabia que dor e prazer andam juntos! A dor não passava. Passou mesmo quando o João Salvador saiu pelo meu canal vaginal. Naquele momento tudo passou. Eu chorava muito! Nem acreditava que tinha conseguido. Aquele ser que eu gerei no meu útero, saiu pela minha vagina e estava ali nos meus braços. O Matheus atrás de mim chorava também. Foi o momento mais intenso, de maior dor e de maior prazer que já tive! Ali eu soube o que era a minha mulher selvagem em ação. Meu instinto primário a me ajudar a atravessar um portal de morte e renascimento. O meu maior amor nasceu e com ele a força de uma mulher que dá à luz o seu filho. Sua cria. Que não é sua, mas do mundo!
Depois fui para a maca, ajudaram-me a levantar. O Matheus cortou o cordão umbilical quando este parou de pulsar. A Fernanda mostrou-me a placenta e mostrou-me onde o JS esteve embrulhadinho. A Ludmila ajudou-me a colocá-lo a mamar no meu peito. Foi a hora de ouro que passou tão rápido que quase nem lembro. Sei que o Matheus depois foi com ele para ser pesado e medido, ali bem à minha frente. Eu fiquei na maca levando pontos e recuperando. Tive laceração de segundo grau. E disseram-me “já te vêm ajudar para você tomar um duche. Você não vai sozinha.” Não entendi na hora o porquê, mas assim que me levantei entendi. Meu corpo estava de rastos. Eu quase não me aguentava em pé. Fui de cadeira de rodas com o JS no colo para o quarto, depois de ter tomado um duche ainda na PPP. E assim começou uma nova aventura — o puerpério e suas novas dores. E novos prazeres…
APRENDIZAGENS & AGRADECIMENTOS
O parto do JS não foi nada como imaginei. Queria parir na água e não aconteceu. A banheira não foi o spa que imaginava… Para mim foi como se tivesse tido um parto muito longo, de 45h… desde que tudo começou. Mas na verdade foi um parto normal, de 15h desde a fase ativa até o JS nascer… Estudei muito, preparei-me muito para ter um parto “perfeito” mas não imaginava que a bolsa iria romper alta e que seria induzida… Também não queria anestesia, queria ter sido forte para suportar as dores. Mas fui forte e corajosa o bastante para dizer que queria anestesia, pois tinha chegado ao meu limite. Não há epinoo que nos prepare para a dor de parir! Mas a fisioterapia pélvica me deu segurança para acreditar que era capaz. Agradeço imensamente o carinho da minha fisioterapeuta.
A vida não pode ser planeada. Fazemos planos mas a vida tem planos para nós. Entrega e aceitação são chave para saber viver!
Dar à luz um novo SER é de grande responsabilidade. Toda a mulher merece fazê-lo com dignidade, rodeada de amor e respeito pelo seu corpo e seu instinto!
Foram precisos 40 dias para integrar tantas emoções e sentimentos. E a integração será para a vida toda… a intensidade de um parto não se esquece!
Agradeço à equipe, a cada uma daquelas mulheres que esteve do meu lado, pacientemente a me amparar e a acreditarem na minha potência. Agradeço ao meu companheiro que ficou ali do meu lado, atrás de mim, dentro da banheira, fora da banheira, dentro do chuveiro, massageando-me incansavelmente e participando do evento mais intenso das nossas vidas — recebendo o fruto do nosso amor!
Agradeço a todas as mulheres que pariram comigo naquele dia. A toda a família e amigos que enviaram o seu amor, luz, orações e vibrações elevadas para recebermos o tão amado JS!
Agradeço ao divino, ao sagrado, à força das minhas ancestrais, que estiveram comigo naquele momento, que me viu morrer donzela para renascer mãe e mulher selvagem!
Que parir possa ser um ato revolucionário de empoderamento da mulher, trazendo ao mundo seres humanos que aprendam o que é amor ao invés de violência e dor.